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Buenos Aires, HORA:ZERO | N.07



1. Uma criança em frente a uma loja de brinquedos. Assim a Tainá define minha reação diante das livrarias, que são muitas em Buenos Aires, quase todas ainda de rua, de bairro, o que faz da cidade um tentador anel cravejado de brilhantes, com o perdão pelo excesso da imagem.


2. Tem dias em que meus vizinhos gritam com o excesso de uma facada. Do fosso de luz do prédio vêm urros que se parecem aos da morte de um tenor. Quase sempre é jogo do Boca.


3. Tem manhãs em que escuto o disco João, de João Gilberto. Se a música definisse o que uma nação alcançou. A música define. Nós é que não alcançamos.


4. Às vezes me ocorrem pesquisas e estudos esdrúxulos que ninguém fará. Por exemplo: um estudo psicossocial sobre o que indicaria a predominância de certas raças de cachorro sobre a índole de um povo. Cogito as variáveis. As metodologias. Tomo um café e desisto. A quem interessar, aqui predominam os salsichas, buldogues franceses e poodles.


5. Talvez o que me dê esse aspecto infantil seja o poder primitivo da fé, a fé de que numa das tantas livrarias desta cidade — e há algo de constrangedor em escrever isto, mas vá lá, os pudores não são mais do que uma internalização desnecessária do ridículo —, encontrarei, naquela estante ainda não percorrida, o livro que há de explicar tudo, esta monstruosidade chamada vida, como disse a poeta polonesa Anna Swir num verso.

6. Outro dia um mendigo me abraçou de súbito numa esquina. Gritava uma boca desdentada e miseravelmente humana. Depois do susto, entendi. O bar da birosca mostrava o replay de um gol do Boca.

7. O melhor livro que já li sobre João Gilberto, não bem sobre ele, mas sobre seu efeito em alguém, é o do Mark Fischer, Ho-ba-la-lá.


8. Há muitos galgos também (não esqueçam do estudo) o que me pareceu estranho desde que chegamos. Depois descobri que vinham de canis desmantelados pela proibição das corridas de cachorros. Pensei em omitir os muitos labradores, mas só vale fraudar pesquisas reais. Ademais, por sua fofura universal, não creio que ajudassem muito na suposta associação entre escolha dos cães e caráter nacional.


9. Parece uma criança, disse de mim a Tainá, assim que topamos, por acaso, numa livraria chamada Referencia, na parte alta da Rua Honduras. Acervo fantástico, ambiente amadeirado e luminoso. Sobre uma das mesas de centro, estava o livro do Mark Fischer em espanhol. Por ótimo que seja, não ele ainda que há de explicar esta monstruosidade chamada vida. Mas tratava-se, sim, de uma característica comum aos itens de fé (como o futebol): a coincidência.

10 Ao erguer os olhos do livro, vi passar na rua, cruzando a vitrine, um camarada com a camisa do Boca. E enquanto eu cantarolava mentalmente o Ho-ba-la-lá notei que ele portava um cão, cuja raça eu não havia mencionado.

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