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Buenos Aires, HORA:ZERO | N.15



1. A Argentina é um país de catorze taxas de câmbios, quinze partidos peronistas e pelo menos dezesseis xingamentos que envolvem as partes íntimas da mãe do camarada em questão.

2. Também são dezessete feriados (há muitos próceres e filhos de próceres), dezoito jogadores de futebol com a alcunha de el loco, e dezenove cortes de carne vermelha que equivalem à nossa costela.


3. Suspendo o cálculo quando vejo um barco cruzar vagaroso o naco do Prata que se avista entre os prédios aqui da janela. É um naco bastante vertical, que também emoldura um pedaço de céu. É um privilégio numa cidade que, como Porto Alegre, dá suas costas ao rio.


4. Às vezes sinto falta de um cigarro que nunca fumei. Contemplar é um verbo preenchido de fumo. As águas têm cor de cobre, o barco é um borrão negro à la Monet, o sol na superfície das ondas é prateado, o que suponho ser uma consequência da brancura da luz meridional.

5. A tevê ligada na sala parece ganhar subitamente volume: um menino de Tucumán teve um dia de fúria ao saber que o dinheiro guardado por três anos num cofrinho para comprar as figurinhas da copa já não tem quase nenhum valor. O apresentador se mostra solidário e expele uma catilinária sobre a inflação. Bombas continuam a cair a esmo em Kiev, o que diz muito sobre a precisão da maldade. Os europeus do norte se parecem cada dia mais com as personagens de Game of Thrones: The winter is coming, sem o gás e o petróleo russos.


6. Sou muito lento para alcançar o controle e mutar o som antes que comecem as notícias do Brasil. Aparecem duas figuras sobre um fundo azul, absurdamente envelhecidas, ontem e hoje se misturam, e me sinto perdido. Na notícia seguinte, de volta aos fatos locais, um grotesco direitista, com nome de doce de leite, as costeletas bastas como as de um conde do século XIX, reune cada vez mais apoio com seus discursos comburentes.


7. O desafio quilométrico de apertar um botão. Vitória e silêncio. Volto outra vez a colar meu rosto na janela e invejo o rio que apenas corre. Acho que é de Bandeira o verso que diz: ser como o rio que deflui. Aqui, neste estado mais sólido da matéria, penso no pibe e em seus cromos a depender das entranhas do porquinho. Queria lhe dizer que muitas vezes passei por isso na infância, moedas e cédulas que perdiam cem porcento do valor em um ano. Depois como meu irmão e eu burlávamos os preços nos mercadinhos, arrancando as etiquetas de remarcação, ninguém sabia mesmo quanto valia cada coisa. Mas ele aprenderá. E lhe desejo a serenidade que não tenho quando for sua vez de lidar com uma democracia que há décadas se converteu em escolher entre os nomes o menos pior, quando tudo piora sempre um pouco mais.

8. O barco já não está. Parece ter deixado um oco na superfície plana do rio. Um leve desfocar da visão me devolve o semirreflexo de minha careca reluzente. Culpo a luz meridional por tal destaque. E fecho os olhos, ofuscado.


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