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Buenos Aires, HORA:ZERO | N.03


1. Para os brasileiros, há uma roleta diária na Argentina: as cotações do Real no paralelo. Da manhã para a tarde, ao sabor das ações de nossos portentosos governantes, perdem-se ou ganham-se dois ranchos, dois livros importados, uma noite de vinho com os amigos. Para quem gosta de uma jogatina (ajudai-me, Senhor, sou fraco) é uma emoção repotente, como se já não faltassem emoções na vida latino-americana.

2. Desde que chegamos em março, os jornais dão a quebra final do país para a próxima semana, são como aquele personagem do Eça de Queirós, que achava que a revolução estava sempre prestes a eclodir.

3. Inflação descontrolada, renegociações com o FMI, sai ministro da economia, entra ministra da economia, um presidente sem apoio político e popular, a enfrentar protestos todos os dias, uma vice corrupta, que não pode apear do poder sob risco de ser presa, subsídios ameaçados, preços controlados de produtos que somem: ao olhar para esses aspectos, assim, friamente, tem-se a impressão de um país posto numa espécie de looping, a viver na eternidade dos anos 1980.

4. Parece-me — mas este é o olhar de quem chega (e já tenho demandas sociais e políticas brasileiras para cinco gerações) — que os argentinos nunca se recuperaram do soco de 2001, que os portenhos ainda cambaleiam grogues entre os prédios franceses e os bairros elegantes, sonhando com lucas verdes numa economia em que qualquer bem durável se vende em dólar, enquanto cresce de maneira atroz a miséria no interior e na região metropolitana.


5. Ainda assim há segurança para caminhar nas ruas da cidade a qualquer hora, os parques se enchem nos fins de semana. As livrarias, as peças, os shows resistem. O transporte público é excelente e barato, mesmo para quem ganha em peso (uma passagem de ônibus custa quarenta centavos de real). Gás e luz também são subsidiados.

6. Há quase vinte anos, bateram-me a carteira (los pungas, diz um tango) na Santa Fé, em frente ao Ateneo, e antes de ser maltratado no consulado brasileiro, fui fazer um boletim de ocorrência. Na delegacia, o policial disse que eu devia estar acostumado com isso em meu país, e uma senhora a meu lado, mais indignada do que eu, disse, tem gente que esquece mesmo em que continente vive.

7. Na oficina do poeta Fabián Casas, que tenho cursado para reciclar minhas próprias oficinas, há gente dos vários países que contornam o Brasil: colombianos, peruanos, uruguaios, chilenos. Mas há também um mexicano que nos contou que na praça central da Cidade do México há uns assaltantes que usam baterias de carro com fios desencapados para derrubar as vítimas e limpar tudo, enquanto soam os trompetes dos mariachis para turistas.


8. Apesar do espanto geral (creio mais pelo inusitado da técnica), Fabián nos perguntou se ali, alguém, de fato, achava aquilo surpreendente. Todos negamos entre risos, unidos por uma experiência comum, que nem a diferença de idiomas é capaz de nublar: Sabemos o que é viver em crise, sabemos que, num giro da roleta, o "dame dos” de um, bandeia-se para o lado do outro (e agora é nossa vez de receber as fichas). E sabemos que, ao melhor, também teremos de enfrentar a próxima guinada da sorte, porque viver neste continente foi, é e provavelmente será uma aventura arisca, de personagens repetidos, e, talvez, saibamos, lá no fundo, que a semana apocalíptica em geral se estenderá pelo século dos séculos, entre o horror e a maravilha.


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