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Sob as estrelas do inverno — Héctor Viel Temperley

A lebre que uma vez eu olhava

entardecer — voavam os chimangos! —

saiu do sol e se sentou a me olhar


O pássaro que uma manhã

pousou exatamente sobre meu coração

numa hora em que seu corpo ainda

esquentava a pele mais que o sol


O pênis entre meus dedos desse doente

que ajudei a urinar enquanto avançávamos

lentamente uma noite para um hospital

cruzando parques de estacionamento


A cadela que buscava meu pênis na sombra

cada vez que eu saía para urinar pelado

olhando as estrelas do inverno

antes de regressar correndo para o colchão

iluminado pelo fogo que ardia toda a noite

nos troncos que eu rachava com meu machado todo o dia


A mulher que pedia serenamente auxílio

agitando os braços e voltando a nadar

nas primeiras horas de uma tarde pesada

em que eu com o pão no estômago

não encontrava outro homem na praia


E todos os metros que nadei no mar

sem jamais ver a terrível barbatana

E minha alegria de noite entre os galhos de uma árvore

ouvindo tangos em minha adolescência

E minhas sestas sentando junto ao caixão de um morto

descansando no digno frescor de uma abóbada

do verão portenho que nos havia humilhado


Falo de todas as horas e de todos os dias

e de todas as estações e de todos os anos


Mas a lebre que uma vez estava sozinha

se posicionou exatamente entre o sol e meus olhos

mantendo exatamente a distância

que mantém um anjo que visita um homem…


E o pássaro que um dia

pousou exatamente sobre meu coração

o que é igual a receber de um golpe

o próprio coração no lugar exato

o único lugar do universo

onde é uma vitória recebê-lo…


E a cadela que se aproximava abanando o rabo

cada vez que voltávamos a nos encontrar pelados

e sós sob o céu do oeste…


Enfim…

Brilham os milhares de olhos que me olham

Brilham as estrelas do oeste no inverno

Sobre a borda do colchão iluminada pelas chamas

me sento ajeito o fogo

leio jornais velhos enquanto minha sombra cresce

São três da tarde no relógio

que depois do almoço deixa de funcionar

A noite é longa

Toda a noite sopra o vento

Minha coxa brilha com a saliva da cadela

ou entre as pernas de uma mulher de bom caráter

pelada alegre adormecida satisfeita

Volto a acordar quando quero

Volto a sair ao frio e a urinar novamente

porque nestas noites bebo muita água

O fogo faz suar a quem o cuida


Enfim…

Fiz um homem urinar

Salvei do mar uma mulher distante

E sei que posso recordar alguns outros

Atos de maior amor ou de maior coragem


Enfim…

Penso em todas as horas penso em todos os dias

penso em todos os anos sem encontrar minha imagem


Mas uma lebre um pássaro uma cadela

olharam para meus olhos meu coração meu sexo

como creio só me olhou também o mar

numa madrugada de verão em que eu vagava

com uma pistola em punho sem ter um lugar para fazer a barba

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