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DA TORRE - A surpresa e o sagrado



“Todas as coisas feitas por mãos humanas são mais ou menos sagradas”, diz o circunspecto especialista em espadas japonesas, apontando, ato contínuo, para uma projeção com lâminas forjadas à maestria, a um só tempo sublimes e letais, que não sei como vim a assistir no Youtube.


Absorto, acabo acompanhando a palestra por mais meia hora. E assim o dia começa com armaduras coloridas, muitas delas semelhantes a exoesqueletos de estranhos insetos, e eu mais uma vez atrasado por um tipo de curiosidade que tantas vezes me afligiu: a curiosidade por aquilo que eu jamais desconfiaria de antemão atrair a minha curiosidade.


Durante um tempo, acreditei que tal fascinação tivesse a ver com uma necessidade profissional, é preciso conhecer os mais variados afazeres humanos para escrever sobre eles, mas hoje admito que é um tipo de curiosidade veleidosa, que se encanta por assuntos inesperados, como carburadores de carros clássicos, velas de embarcação, os variados tacos usados no golfe. O que me espanta, hoje, é perceber que tais curiosidades, antes mobilizadas pelo mundo, erguidas por alguma conversa casual — dessas que um dia foram típicas na realidade —, agora sobrevivam apenas em cálculos digitais de máquinas programadas para saber o que somos, do que gostamos, o que pode nos surpreender.


Soa, eu sei, a lamúria de pessoa obsoleta, mas eu preferia que houvesse alguém no comando dessas sugestões excêntricas que recebo no Youtube. Como uma coisa, despojada de carne e sentimentos, pode promover espanto num mundo todo programado?


E logo sinto saudades das lojas de disco e das livrarias, lugares feitos para a surpresa de encontrar o que não tínhamos como saber querer. Lá trabalhavam pessoas que entendiam de nosso gosto a ponto de nos sugerir obras que jamais suspeitaríamos buscar (o Rui da Palmarinca, o Carlão da Palavraria, o Victor da Terceiro Mundo), figuras que a cada ano rareiam mais e mais.


E mais melancólico do que o recomendado eu sigo, feito um sujeito duas doses acima do prudente, e sento-me à mesa para escrever esta crônica. Abro o computador, mas meus olhos estão aferrados à máquina de escrever Olivetti aqui ao lado, e acaricio sua fria densidade, com a devoção que merecem os itens sagrados. Depois reparo no pequeno leão de bronze, também posto sobre a mesa, originalmente feito para conter livros numa prateleira, mas agora convertido num peso de papel, patinado pelo tempo, com uma das patas apontando para o firmamento do teto.


Sim, as coisas feitas por mãos humanas são sagradas. Das divindades simples, como uma lapiseira ou o papel que envolve o band-aid à espera do lixo, aos ídolos da morte, como as espadas dos samurais, ou a bomba sobre o Japão. São o que somos, as nossas coisas, extensões, petrificações de nossos humores, de nossa violência, de nossa vanidade, de nossa precária glória.

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